03 julho, 2009

Reportagem: De Alverca a Saragoça, à boleia de um comboio de mercadorias

REPORTAGEM PUBLICO

De Alverca a Saragoça são 1200 quilómetros sobre carris que um comboio de mercadorias percorre em 19 horas e 30 minutos. O PÚBLICO aceitou o desafio para viajar na cabine da pesada locomotiva a diesel que atravessa a Península rebocando uma composição que pesa 1200 toneladas. E que só pára para meter gasóleo e mudar de tripulação.

São 22h30 no terminal de mercadorias de Alverca quando o maquinista Ricardo Lopes, aos comandos de uma locomotiva Vossloh, comunica ao Centro de Comando Operacional da Refer, em Braço de Prata, que o seu comboio está pronto a partir. A ordem vem via rádio e informa que deverá parar em Alhanda para receber do chefe da estação um modelo com a lista de afrouxamentos que terá de fazer dali até à Pampilhosa.

A pesada máquina, de 4200 cavalos, põe-se em movimento e desliza do ramal, entrando na linha do Norte. Dentro da cabine o ruído e as vibrações são mínimos, o que é um alívio para quem ali tem de permanecer durante largas horas.

Já lá vai tempo em que este tipo de locomotivas cheirava a gasóleo e o ribombar dos seus motores se repercutia por toda a sua estrutura. Agora é como se fosse uma máquina eléctrica, que circula sem esforço pela lezíria, com o Tejo ao lado, que só quase se adivinha porque a noite está nublada.

Meia hora é quanto dura esta velocidade constante de 100 km/hora porque em breve paramos numa linha desviada para sermos ultrapassados por um comboio de passageiros – o Talgo Lusitânia Hotel, que vai também para Espanha e passa veloz ao nosso lado. Por entre as janelas iluminadas distinguem-se fugazmente os passageiros jantando na carruagem-restaurante.

Aqui é consolador saber que temos umas bifanas para comer pela noite fora. Pensamos nisso quando vemos o rasto de luz extinguir-se na via e ficamos novamente na escuridão. Entretanto o sinal vermelho passa a verde e a Vossloh retoma a marcha.

nº 49801
Mas o que tem o comboio nº 49801 de especial, que amanhã o fará ser alvo da curiosidade de muita gente quando o avistar nas estações? A locomotiva vermelha da Takargo (uma empresa do grupo Mota Engil) indica que este é o primeiro comboio português a operar em Espanha. A liberalização do transporte ferroviário de mercadorias provocou uma pequena revolução neste sector e agora já não é necessário perder horas na fronteira para mudar de máquina. As composições viajam directas fazendo concorrência aos camiões TIR que já há anos deixaram de conhecer os obstáculos fronteiriços.

Este comboio vai carregado de pacotes de papel reciclado, destinado a uma fábrica de papel em Saragoça. Em vez de contentores, é transportado em “caixas móveis”, estruturas mais leves e flexíveis que tanto podem assentar num vagão do caminho-de-ferro como num camião. Foi até por via rodoviária que chegaram a Alverca, vindas de Alcochete, Loures e Maia, para agora viajarem a Espanha, onde o papel reciclado virará novo. O mesmo comboio trará de regresso bobinas de papel para a indústria transformadora, numa viagem que se realiza quatro vezes por semana.

“Desta forma nunca andamos em vazio e trazemos carga na ida e na volta”, explica Pires da Fonseca, administrador da Takargo, que, sem gravata, acompanhará o comboio até Saragoça para se inteirar in loco de toda a operação.

Esta noite o 49801 saiu de Alverca uma hora mais tarde, atraso que já não recuperaremos até ao fim da viagem. Em Coimbra passa-se às 1h11 quando se deveria ter passado às 23h56. A Refer não ajuda. A tal lista de afrouxamentos que o maquinista recebeu em Alhandra “parece uma lista telefónica”, ironiza o próprio. Por isso, devido ao mau estado da via, sobretudo nos troços da linha do Norte que ainda não foram modernizados, a viagem transforma-se num autêntico rally. Embora podendo circular a 100 Km/hora, o comboio é constantemente obrigado a reduzir a velocidade, às vezes a 30 Km/hora, o que implica um consumo incrível de combustível.

1200 toneladas em movimento
Os números impressionam: a locomotiva reboca uma composição de 22 vagões que pesa 1200 toneladas e mede 460 metros. E gasta a módica quantidade de 4,5 litros de gasóleo por quilómetro.

Parece muito, mas imagine-se o consumo de 22 camiões (tantos como o número de caixas móveis transportadas nesta composição) numa viagem de 1200 quilómetros. “Esta é daquelas situações que não oferece dúvidas. O comboio é mais amigo do ambiente e tirar camiões da estrada deveria ser uma prioridade de qualquer governo”, diz o administrador.

Depois da Pampilhosa, o comboio da Takargo serpenteia agora pelas curvas da linha da Beira Alta. Subindo sempre, atravessa túneis e pontes e galga sem problemas as pendentes mais inclinadas. Mortágua, Sta. Comba Dão, Carregal do Sal, Nelas, são como ilhas de luz no meio da escuridão, que o comboio atravessa sem parar.

Desta vez não há afrouxamentos. Na Pampilhosa, o chefe da estação só entregou uma lista de dois ao maquinista. E também não há ultrapassagens nem cruzamentos com outros comboios. Na linha da Beira Alta – principal via ferroviária de acesso à Europa – somos durante a única composição que nela circula. O que confirma a fraca quota do modo ferroviário (apenas 4 por cento) no transporte de mercadorias.

Mangualde avista-se às 2h40 da manhã. Agora a noite está limpa e avista-se um céu estrelado sobre um extenso vale salpicado de luzinhas amarelas. Imensa, a serra da Estrela é uma massa compacta ao longe.

O farol da locomotiva rompe a noite e incide sobre as duas tiras de aço dos carris. A linha está em bom estado e a velocidade oscila entre os 60 e os 100 km/hora. Já não há túneis e a vegetação que há pouco quase ameaçava invadir a linha deu lugar a uma paisagem agreste, de penhascos e granito.

Dos 50 e 60 km à hora
De Celorico à Guarda a Vossoloh faz o seu melhor, mas não passa dos 50 e 60 km à hora para vencer a subida até à cidade mais alta do país. De vez em quando patina, mas a máquina tem um sistema automático que cospe (é o termo técnico) areia para a linha para as rodas ganharem aderência ao carril. Já se recuperaram uns minutos, mas de repente um erro técnico faz parar o comboio.

O Convel é o computador de bordo que zela pela segurança da viagem. Avisa o maquinista sobre a sinalização na via, a existência de afrouxamentos (a “lista telefónica” entregue ao maquinista é um procedimento redundante) e alerta-o quando este não responde em conformidade podendo mesmo parar o comboio automaticamente.

Agora um “erro de baliza” fez a composição imobilizar-se em plena via quase à entrada da Guarda. Não foi fácil – nem nada barato tendo em conta o consumo de combustível - pôr as 1200 toneladas a mover-se em plena subida e retomar a velocidade. Mas pior seria, mais à frente, já quase em Vila Formoso, quando um segundo erro de sinalização voltou a fazer parar o comboio.

Aqui a rampa era mais inclinada e, uma vez parada, a composição começa a descair, em respeitinho absoluto pela lei da gravidade. O maquinista aperta os freios para evitar o recuo. E respira fundo preparado para a luta. É preciso jeitinho e técnica. Aliviar a composição e dar força à máquina. Patina. Mete areia. Descai. Patina de novo, mais areia, descai outra vez. E insiste-se no esforço de tracção. Os engates retesam-se. Vinte e dois vagões carregados querem descer. A locomotiva quer fazê-los subir.

A luta dura alguns minutos e o comboio volta a andar. Passam dez minutos da quatro da manhã e pouco depois estamos em Vilar Formoso, onde a dupla de maquinistas Ricardo Lopes e Samuel Valente dá lugar aos seus colegas Raul Lopez e Juan Carlos Hernandez. Uma mudança justificada pela necessidade de descanso do pessoal e porque são os espanhóis que conhecem a regulamentação dos seus caminos de hierro.

Pela planície de Castela
A Vossoloh vai também agora “ler” essa sinalização em castelhano pois o sistema Convel é desligado para dar lugar ao ASFA, usado em Espanha. O rádio-solo português é desligado e liga-se o do país vizinho. “A nossa grande vantagem é termos máquinas inter-operáveis que podem circular nos dois países”, explica Pires da Fonseca. Nem a CP nem a Renfe poderiam fazer isto que é chegar à fronteira e continuar a viagem sem mudar de tracção.

Viagem que é agora monótona e cansativa pela planície de Castela. Às cinco e meia da manhã paramos em Ciudad Rodrigo onde o comboio da Takargo cruza com o célebre Sud Expresso, vindo de França e que só às 11 da manhã chegará a Lisboa.

Depois, até Salamanca o andamento é regular e luta-se com o cansaço. Os olhos querem fechar-se, mas o dia clareia. A linha do horizonte ganha contornos e deixa ver extensões de terra cultivadas com cores contrastantes: castanho, vermelho, verde.

Na cidade universitária espanhola dá-se a única grande paragem do percurso. Os maquinistas desengatam a locomotiva e levam-na a abastecer. Mas os ferroviários espanhóis desconfiam. Não tinham visto aquela máquina vermelha ali e querem saber o seu número. A coisa esclarece-se e 3000 litros de gasóleo enchem os tanques do monstro que tem capacidade para 6500 litros (tanto como um camião cisterna).

Está frio e o sol tarda em romper pelo céu nublado. Dentro da cabine está quentinho e apetece dormir. A viagem continua a ser monótona, mas em Medina del Campo há nova paragem, desta vez para inverter o sentido da marcha porque o comboio vai descer na direcção de Madrid.

A locomotiva é atrelada à outra extremidade do comboio. Um dos maquinistas transporta os faróis da cauda - duas pesadas lanternas que obrigatoriamente têm de circular no último vagão – de uma ponta à outra da composição. E nessa operação caminha quase um quilómetro.

Tudo isto é feito sem intervenção de nenhum funcionário da enorme estação de Medina. A tripulação é polivalente e autónoma e só precisa agora que o regulador espanhol lhe dê autorização via rádio para voltar a pôr-se em marcha.

E não é que agora os olhos se fecham mesmo e as pernas cedem? A monotonia da paisagem, as rectas a perder de vista, o embalo da composição convidam a um sono profundo. Mas não há onde dormir. Ao contrário dos camionistas, os maquinistas do comboio não têm um beliche para dormir. E nem sequer há lugar sentado para todos.

Atento, Juan Carlos mantém a velocidade e vai pisando um pedal para mostrar que está vivo e acordado. Se não o fizer, ao fim de alguns segundos o comboio pára. Trata-se do “homem-morto”, um sistema de segurança usado em todos os comboios.

Venham as curvas
Felizmente a paisagem começa a mudar. Sucedem-se as curvas e damo-nos conta que iniciamos uma longa subida pela serra de Guadarrama. A linha torna-se sinuosa e íngreme e a máquina não passa dos 50 km/h. O sol finalmente rompe as nuvens e acaricia-nos com um calor morno que faz aumentar o sono.

Mas agora sucedem-se os túneis, as trincheiras, os aterros, viadutos colossais que foram grandes obras de engenharia do séc. XIX e continuam imprescindíveis no séc. XXI.

Com tanta curva, bem se pode espreitar pelo retrovisor que não se avista a cauda do comboio, qual serpente que se contorce pela linha de montanha. Passamos Ávila, sempre sem parar e atingimos La Cañada, a estação mais alta de Espanha, 1600 metros acima do nível do mar.

A partir de agora o maquinista Juan Carlos desperta também ele do torpor em que seguia e agarra-se aos manípulos com ambas as mãos para segurar as 1200 toneladas que ganham embalagem na descida que se inicia. É preciso perícia para cumprir a velocidade permitida, para mais neste troço que está em obras e cheio de afrouxamentos.

Em breve passamos por El Escorial (o famoso mosteiro avista-se desde o comboio) e continuamos a descida para Madrid. A paisagem é mais humanizada e cruzamo-nos com comboios suburbanos. E até apanhamos um pela frente - que nunca o veremos porque as distâncias de segurança no caminho-de-ferro são grandes -, mas que pressentimos porque aparecem-nos sinais vermelhos e amarelos a todo o instante.

Madrid à vista
Madrid avista-se, mas passa-se ao lado, por uma linha periférica que dá ligação ao corredor de Barcelona. Às 13h30 estamos em Guadalajara, onde a tripulação que entrou em Vilar Formoso de madrugada cede agora os comandos ao maquinistas Carlos del Prado e Virgil Visar.

De novo a planície, as rectas e uma paisagem árida pintada de um vermelho forte. A linha acompanha um rio. Às vezes há túneis e pontes, mas os sinais estão todos verdes. Desde que foi inaugurada a linha de alta velocidade Madrid-Barcelona, esta ficou com um tráfego reduzido, relegado a mercadorias e alguns regionais.

Chove, mas o dia mantém-se claro. Os olhos fecham-se. Não há mais história. Só nomes de estações que se sucedem: Siguenza, Calatayud, Grisen, Casetas e a zona industrial de Saragoça e o ramal da fábrica de Saica, onde o comboio de mercadorias internacional nº 49801 dá entrada para deixar a sua carga de papel.

Foram 1214 quilómetros percorridos em quase 20 horas.

In Publico

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